Vivemos imersos em linguagem: discursos, mensagens, linguagens corporais e imagéticas que se traduzem em sentidos, palavras diversas que nos inquirem o tempo todo. Assim é, pois somos seres semióticos, vivemos em busca de (um) sentido para tudo o que fazemos. Por meio da linguagem aprendemos, ensinamos, amamos – e odiamos.

Sim, precisamos falar sobre o ódio.

Drummond dizia que a palavra esconde muitas faces sob sua aparente neutralidade. Uma delas, certamente, é a face detestável daquele que odeia quem sequer conhece. Velhos preconceitos (há quem os julgava esquecidos) emanam dessa face indesejável na forma de palavras tão afiadas quanto punhais.

Os alvos, simplesmente ocupados em viver suas próprias vidas, não podiam prever os ataques: a jornalista negra apresentando a previsão meteorológica (telespectador: “vá fazer suas previsões na senzala, não comprei televisão colorida para ver negros”), a médica cubana atendendo seus pacientes (advogada: “será mesmo médica? Ela tem uma cara de empregada doméstica”), o porteiro realizando seu sonho de visitar a Europa (escritora colunista: “ser rico perdeu a graça, em uma ida à Paris, corre-se o risco de encontrar o porteiro do nosso prédio”), os garis desejando feliz natal (jornalista: “que m*, dois lixeiros desejando felicidades do alto de suas vassouras, o mais baixo da escala de trabalho”), o paciente relatando sua doença pregressa (médico: “não existe peleumonia nem raôxis”), o publicitário falando de gênero (evangélica: “que absurdo homens e mulheres trocando suas roupas como se fossem iguais e tivessem o direito de escolher, vamos boicotar!”), duas jovens apaixonadas se beijando (cidadão de bem: “se fosse filho meu, daria uma surra e colocaria para fora de casa”) – não se menciona aqui os notórios casos de violência física, uma vez que o objetivo do texto é centrar-se no discurso de ódio, raiz de todas as outras formas de violência.

Que crime cometeram essas pessoas, alvos desses comentários impensáveis? Contra o quê atentaram tão terrivelmente para merecerem ser atacadas de forma vil, atacadas naquilo que não podem (nem deveriam!) mudar ou evitar: a cor de sua pele, sua origem social, sua sexualidade.

Ainda que (mal) disfarçados de “brincadeira” ou “opinião pessoal”, esses discursos têm um elevado valor injuntivo, visam a uma ação no mundo, a reprodução de certas ideologias e a manutenção da desigualdade que interdita a liberdade no espaço social. Esses discursos não são “apenas palavras” (nenhum discurso o é), tendo em vista que afetam empiricamente a vida em sociedade, por exemplo, quando se diz que o pobre não pode ir à Paris, o negro não pode ser médico, o gay não pode demonstrar seu amor. O ódio limita o próximo, impede sua circulação, o diminui. Chega-se ao cúmulo da intolerância quando um deputado de república descreve um cidadão do país utilizando termos como “arroba” e “reprodutores”, palavras vindas do léxico agropecuário, destinadas à nomenclatura animal.

Dizer é agir sobre o mundo. Se podemos animalizar o próximo com nossas palavras, também podemos evocá-las para vivificar a justiça: que elas denunciem o ódio e exponham a insensatez de excluir quem é diferente. Que apelem à humanidade dentro de cada um de nós em respeitar aquilo que, eventualmente, não se consegue entender. Aliás, entender (pensar antes de) nossas ações é o princípio da convivência pacífica. “Quanto menos entendemos, mais julgamos”, alerta o escritor moçambicano Mia Couto. Comecemos por tentar entender de onde vêm o ódio e o que querem aqueles movidos por ele. Entender é o primeiro passo para o diálogo tão necessário atualmente. Por esta razão é tão importante que temas indigestos também cheguem à escola, às universidades, e é tão importante que professores continuem discutindo esses temas com seus alunos, e os alunos com seus colegas.  Onde, se não na universidade – e depois nas escolas, como futuros professores, no caso dos alunos dos cursos de licenciatura – eles poderão aprender e exercitar a arte de argumentar e ouvir o argumento alheio?

De forma geral, urge entendermos que é possível discordar sem agredir o outro, ou seja, é possível discordar e continuarmos juntos. Enquanto o ódio nos empobrece e mutila, a discordância sadia é essencial para uma sociedade plural e motivadora. Nossas diferenças nos enriquecem.

Helio Oliveira é linguista, professor do curso de Letras da UNIFEOB e liderou o manifesto contra a intolerância, promovido pelo 3º módulo do curso.

Veja, abaixo, alguns dos trabalhos:

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